segunda-feira, outubro 27, 2025

CÉU E INFERNO (Tengoku to Jigoku)



“Mas aqui, lenta e inexoravelmente, Kurosawa nos mostra algo completamente diferente. Ele sugere que, a despeito de tudo, o bem e o mal são o mesmo, e que todos os homens são iguais.”
Donald Richie (em Os Filmes de Akira Kurosawa)

Curiosamente, no início de minha cinefilia, eu custei a me encantar pelo cinema japonês. Claro que os primeiros filmes que vi foram de Akira Kurosawa, mas mesmo assim o cineasta não me encantava. E aí eu passei a generalizar, achando que não gostava de cinema japonês. Mas aí comecei a ver uns animes incríveis e pensei: acho que só gosto mesmo dos animes e não dos live-actions. Eis que conheço Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi e as coisas mudam e muito. Passo a vê-los como monstros sagrados do cinema e meu interesse pelo cinema japonês vai crescendo (inclusive na época que os filmes de terror japoneses passaram a se tornar muito populares), mas ainda faltava eu me encantar por Kurosawa. E por mais que eu tenha adorado OS SETE SAMURAIS (1954), só visto recentemente, nada me deixaria preparado para CÉU E INFERNO (1963), um dos melhores filmes que vi na vida. Ou seja, como fui estúpido. Que os deuses do cinema me perdoem.

E tem mais: cheguei a CÉU E INFERNO por causa da existência do remake de Spike Lee, LUTA DE CLASSES, lançado neste ano. Ou seja, precisei ainda de um empurrãozinho de um filme americano para perceber que não tinha visto uma das maiores obras-primas do cinema, que por sua vez foi derivada/inspirada num romance americano de Edward McBain, também conhecido como Evan Hunter, que é como está creditado no filme de Spike Lee. A relação de Kurosawa com o cinema e a literatura americanas sempre foi forte, e por isso havia muitos críticos dele no Japão: o achavam ocidentalizado demais.

Falando em cineasta atraído pelos Estados Unidos, não acredito que tenha sido uma coincidência eu ter visto CÉU E INFERNO num espaço de tempo tão próximo da revisão de PARIS, TEXAS, de Wim Wenders, no cinema. Digo isso, pois a cena de encontro cara a cara dos personagens de Toshiro Mifune e Tsutomo Yamazaki guarda muitas semelhanças com a cena do reencontro de Travis com sua ex-mulher, em especial nos momentos em que, separados por um vidro, o rosto dos dois personagens se une, como duas faces da mesma moeda. (Sobre seus pontos em comum, mesmo antes da prisão do sequestrador, tanto o sequestrador quanto o empresário agora arruinado se veem obrigados a perambular sozinhos pelas ruas. O homem mau por não poder gastar o dinheiro do resgate sob o risco de ser pego pela polícia; o homem bom por não ter mais como trabalhar.)

No caso do filme de Kurosawa, há uma acentuação do aspecto humanista, e do quanto também o diretor estava disposto a frisar aspectos econômico-sociais, a destacar a barreira social gritante da sociedade japonesa do pós-guerra: por mais que Gondo (Mifune) seja um homem rico e que faz uma boa ação que sacrifique todo seu patrimônio e Takeuchi (Yamazaki) seja o pobre que comete o crime e paga com a pena capital, há algo de muito trágico e muito triste na história de Takeuchi, e Kurosawa apresenta isso sem se aprofundar no personagem e em seus dramas. Falando de maneira simplista, um é o herói, ainda que de início seja alguém prestes a cometer um golpe, e o outro é um vilão, o sujeito que não apenas sequestra uma criança, mas também mata pessoas viciadas em drogas para atingir suas metas. Seu ponto de partida para o sequestro: o ódio nascido da diferença de classes. 

A primeira hora do filme se passa quase que completamente na sala da imponente casa de Gondo. E tudo até ali é perfeito e a encenação naquele espaço é excencialmente cinematográfica (apesar de podermos lembrar do teatro), com uma janela scope que mais nos aflige e aprisiona do que amplia os espaços. É uma primeira parte tão boa que até lamentamos um pouco quando ela acaba. Se bem que por primeira parte, diria que ela de fato acaba quando toda a cena do trem, com a negociação com o lugar da entrega do dinheiro ao sequestrador, tem fim.

A partir daí Kurosawa nos apresenta a um novo filme, por assim dizer, ao “inferno”, aos bairros chineses e ao submundo dos traficantes e viciados em heroína. Antes disso, havíamos sido apresentados ao “céu”, ou seja, à casa de Gondo, que depois de ter perdido tudo para o sequestrador, agora se esforça para permanecer na casa. Nesta segunda parte do filme, somos convidados a acompanhar os esforços da polícia, como um ente coletivo, para conseguir de volta o dinheiro do sequestro e prender o sequestrador. A certa altura, o espectador é apresentado ao personagem do criminoso, assim como somos apresentados ao oposto da opulência da casa de Gondo: o que vemos ali é um ambiente habitado por viciados em drogas vivendo em condições sub-humanas.

Também somos brindados com uma cena que acontece numa espécie de danceteria que denuncia os vários anos de dominação americana no pós-guerra, o quanto o Japão ficou ocidentalizado, inclusive no comportamento. A mão de Kurosawa na condução deste thriller é tão acertada que por vezes nos pegamos segurando alguma coisa, como se estivéssemos num carro em movimento. E para chegar até esse resultado, houve ações pensadas de maneira milimétrica, com o uso de muitas câmeras para a cena do trem, com o posicionamento de câmeras que enfatizam o alto e o baixo em diferentes momentos, com a escolha de lugares diferentes para filmar a cena na casa de Gondo. Sinto que o ideal é ver e rever este filme várias e várias vezes.   

Visto no box em BluRay Kurosawa Essencial (a imagem tá tinindo de linda!) e ainda contém diversos extras incríveis, como entrevistas com Kurosawa e um making of que nos faz gostar ainda mais do filme. Se é que isso é possível.

+ TRÊS FILMES

BEATING HEARTS (L’Amour Ouf)

Gilles Lelouch é um cineasta com uma experiência maior na comédia. E talvez isso tenha sido positivo para que BEATING HEARTS (2024), possivelmente seu maior e melhor filme, seja algo menos pesado do que se poderia esperar de uma história de violência e paixão. O filme começa com o personagem de François Civil e seus parceiros de crime enfrentando a morte numa briga de gangues. Esse desfecho do prólogo antecipa a tragédia que veremos nas próximas 2h30, quando voltaremos no tempo e conheceremos os adolescentes Clotaire e Jackie. Ele, um rapaz violento e desinteressado nos estudos; ela, uma garota fã de The Cure e mais centrada. Quando está com ela, o rapaz violento fica doce e passa a ver sentido na vida. Uma pena que depois ele acaba aceitando o convite para entrar na máfia. Os atores mais jovens (Malik Frikah e Mallory Wanecque) funcionam melhor que a versão adulta (Civil e Adèle Exarchopoulos), mas é na versão adulta que eu me peguei mais emocionado, especialmente em duas cenas finais. E principalmente pelo fato de a narrativa lutar contra o fatalismo, ou apresentar uma realidade alternativa e feliz para aqueles personagens, como se um deus que se enamora e tem misericórdia desse casal de amantes. O filme é pulsante, tem muita música e é uma história de amor das mais bonitas do cinema recente.

THE MASTERMIND

Não é o primeiro filme de Kelly Reichardt sobre foras-da-lei. Desde seu primeiro longa, RIVER OF GRASS (1994), que ela já mostrava seu fascínio por histórias de crimes. Mas sua visão do ponto de vista dos criminosos é mais sutil, além de muito humana. Lembro que quando saiu FIRST COW (2019) alguém chegou a dizer que se tratava do mais delicado heist movie já feito. Até porque, ainda que haja um suspense nas cenas do roubo do leite, o foco maior é a relação de amizade e colaboração entre dois homens. No caso de THE MASTERMIND (2025), a diretora opta por focar na decadência do personagem de Josh O’Connor, um homem casado e com dois filhos pequenos, filho de um juiz, que tem a ideia de roubar quatro quadros de um museu de arte. Para tal, contrata três colegas com pouca experiência no ramo e o resultado já deixa claro o amadorismo do grupo. A narrativa tem um andamento que faz lembrar tanto o cinema da Nova Hollywood (destaque para a fotografia que remete à época) quanto o filme noir francês, tão envolvente quanto lento, para os padrões do cinema de gênero de Hollywood, ainda que atraente o suficiente para agradar plateias maiores do que o filme possivelmente alcançará. Sorte de quem o vir. Saindo longe da vulgaridade, Reichardt nos apresenta a novos heróis fracassados.

O BRILHO DO DIAMANTE SECRETO (Reflect dans un Diamant Mort)

Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada, a de ver O BRILHO DO DIAMANTE SECRETO (2025), quarto longa-metragem do casal Hélène Catet e Bruno Forzani, na telona. Eles têm se especializado em fazer um trabalho de homenagem aos filmes de gênero europeus das décadas de 1960/70, mas com pouco interesse na trama e muito interesse na construção de imagens incríveis. Logo, é embarcar na viagem sem precisar entender muito e ser feliz, com tanto diamante/vidro estilhaçado, ângulos de câmera inusitados, violência gráfica exacerbada e por isso mesmo pouco agressiva, e temos Fabio Testi encabeçando o elenco. Ele que fez vários westerns spaghetti e protagonizou um dos meus gialli favoritos, O QUE VOCÊS FIZERAM COM SOLANGE?, de Massimo Dellamano. Mas a maior homenagem aqui é a PERIGO: DIABOLIK, de Mario Bava, que por sua vez é adaptação do quadrinho Diabolik. Aqui o que seria o personagem Diabolik é uma mulher e se chama Serpentik, adversária misteriosa de um espião, que agora vive aposentado, mas relembrando seu passado. Mas isso é ficção ou é um filme? Ficção e realidade se confundem deliciosamente na nossa cabeça. Cena favorita: Serpentik entra num bar e enfrenta um grupo de homens. Trata-se de uma cena que até poderia se comparar com as de KILL BILL, mas é ainda mais inventiva em seus detalhes. O que falta no casal belga em construir cenas de ação perfeitamente coreografadas, sobra em saber usar a montagem a seu favor.

domingo, outubro 12, 2025

A LEI DOS MARGINAIS (Underworld U.S.A.)



A minha peregrinação pela obra de Samuel Fuller está em ritmo muito mais lento do que gostaria. Poderia até dizer que é que sua obra não me traz o mesmo impacto de outras peregrinações recentes, como foi o caso de Abel Ferrara, Fritz Lang e Brian De Palma, para citar aprofundamentos nas obras de diretores iniciadas de 2020 para cá, ma a verdade é que hoje entendo por que Fuller é tão querido pelos críticos: porque ele se torna mais fascinante à medida que pensamos nele, em seus filmes, em seus personagens trágicos. Mas sei também que os tempos são outros e que também tem me faltado tempo para escrever. E sei também que estou vivendo um dos melhores momentos de minha vida, e por isso não posso reclamar. Vamos seguindo, agora iniciando os filmes dos anos 1960 de Fuller, com A LEI DOS MARGINAIS (1961), um filme que, confesso, não foi dos que mais me envolveram.

Curioso como Fuller seguia seu próprio caminho nas décadas em que mais trabalhou: as de 1950 e 60. Nos anos 1950, ele poderia estar fazendo filmes semelhantes aos noir produzidos em grande escala, mas acabou fazendo apenas ANJO DO MAL (1953). Até podemos classificar CASA DE BAMBU (1955) e O QUIMONO ESCARLATE (1959) também nessa categoria, mas eles fazem parte daquele fascínio do diretor pelo mundo asiático.

A LEI DOS MARGINAIS chega num momento em que o film noir já é considerado morto pelos historiadores, e antecipa o filme policial mais sujo que estaria mais presente no cinema da Nova Hollywood. É uma história de vingança que começa de maneira muito simples, mas que vai se tornando mais intrincada quando o personagem de Cliff Robertson sai da prisão para se vingar do pai, assassinado pela máfia. E eu confesso que comecei a perder um pouco o gosto nesses momentos do filme: as intrigas que o personagem cria para fazer com que seus inimigos matem a si mesmos.

O que mais me pegou no filme foi uma cena em que o interesse amoroso do personagem (Dolores Dorn) pede ao protagonista em casamento. Nesse momento, o sangue sobe de raiva no espectador (subiu em mim, ao menos), mas é aí que vemos o quanto essa personagem é herdeira das heroínas do cineasta, lembrando Jean Peters em ANJO DO MAL, Shirley Yamaguchi em CASA DE BAMBU, Barbara Stanwyck em DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e principalmente Andie Dickinson em NO UMBRAL DA CHINA (1957), um de seus filmes mais devastadores, especialmente quando pensamos na personagem feminina. Também há uma cena de fazer suar frio em A LEI DOS MARGINAIS: a do atropelamento de uma criança. Nos extras do box O Cinema de Samuel Fuller há um entusiasmado comentário de Martin Scorsese sobre o filme e um pouco sobre o diretor também. Quem tiver de posse dessa mídia física, vale muito conferir.

Um livro que tenho acompanhado ao longo dessa peregrinação pela obra de Fuller é Samuel Fuller, de Phil Hardy, que acredito estar fora de catálogo, mas é possível encontrar em cópias em PDF. É uma dessas cópias que tenho lido. E acho interessante a classificação que o autor fez das obras do cineasta, dividindo por temas: “um sonho americano”, “jornalismo e estilo”, “uma realidade americana”, “Ásia” e “a violência do amor”. Claro que esses temas podem e se interrelacionam entre si e A LEI DOS MARGINAIS é enquadrado no tema “uma realidade americana”, assim como outros vistos, como BAIONETAS CALADAS (1951), TORMENTA SOB OS MARES (1954), PROIBIDO! (1959) e outros dois que pretendo ver e/ou rever: MORTOS QUE CAMINHAM (1962) e PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963).

Na trama de A LEI DOS MARGINAIS, o herói, de modo a se vingar do pai, assassinado pela máfia, faz jogo duplo entre o FBI e a máfia. Ele não tem uma ética de bem e mal, não tem interesse em fazer o bem, porque acha que os mafiosos são um mal para a sociedade, mas por pura vontade de satisfazer o seu ímpeto de vingança, de fazer valer seu ódio acumulado de anos. Ainda assim, ele salva Dolores, a leva para casa, mas não a vê como alguém que seja boa o suficiente para casar com ele. Pelo menos, não a princípio, não quando ele percebe sua própria estupidez, sua própria imbecilidade. Seu interesse em salvar Dolores está mais associado em conseguir alguém para dedurar os mafiosos e conseguir mais informações, e isso fica explícito na cena de sexo entre os dois, quando ele a seduz enquanto a questiona. O fim do herói não é um fim tão heroico assim, no fim das contas, mas ao menos ele havia alcançado algo próximo de uma honradez.

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CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (Kuraudo)

Décimo filme de Kiyoshi Kurosawa que vejo e fico feliz que de vez em quando o nosso circuito abre uma brecha para um ou outro filme seu. CLOUD – NUVEM DE VINGANÇA (2024) foi um dos três que ele dirigiu no ano passado. Aos 70 anos de idade, Kurosawa está com uma energia de menino de 20. Este novo filme é bem surpreendente. Não tinha lido nada a respeito, mas esperava um horror sobrenatural. E ele começa mais ou menos assim, com uma das cenas mais assustadoras do cinema de gênero contemporâneo. Mas depois o filme vai se transformando em outra coisa, não parando de nos surpreender. Na trama, Yoshii é um jovem que decide largar o emprego para se dedicar a comprar e revender coisas. Sua maior diversão é olhar a tela do computador e perceber que teve o tino para o negócio, que seu lucro foi imediato. Yoshii não se importa se a bolsa que compra é de grife ou falsificada; se está passando por cima de colecionadores apaixonados de uma boneca para oferecer mais e vender com um preço bem mais caro. Até que as coisas começam a complicar para ele e ele passa a ser perseguido. Uma das graças do filme é nos fazer ficar do lado, ou talvez torcendo, ainda que o verbo não seja bem esse, por alguém que na verdade é o grande vilão. Inclusive, uma das coisas que não me fez amar o filme foi o aspecto pouco sutil com que Kurosawa ataca o capitalismo. Mas é, sim, um belo filme e um herdeiro de PULSE (2001), seu melhor trabalho (entre os que vi), não pelo caráter sobrenatural, mas pelo interesse pelo mundo virtual.

ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (Ernest Cole: Lost & Found)

Diferente de EU NÃO SOU SEU NEGRO (2016), um filme carregado de muita raiva (e com toda a razão), ERNEST COLE – ACHADOS E PERDIDOS (2024) é carregado de muita melancolia por parte do diretor Raoul Peck. E de certa forma isso é totalmente coerente com o espírito do personagem, pelo menos em sua trajetória de solidão e despatriação, quando sai de uma África do Sul vivendo seus mais brutais e covardes momentos do Apartheid, para viver nos Estados Unidos. Em seu país, ele criou um rico trabalho fotográfico que denuncia as violências cotidianas sofridas pela população negra – casas destruídas, assassinatos durante protestos, ofensas gratuitas nas ruas, além do que já se sabe sobre o regime, o de separação total de espaços e de humilhação e desamparo de quem não é “europeu”. Um dos momentos mais tristes do filme é quando Cole compara a violência na África do Sul e nos Estados Unidos, especialmente no sul, como o Mississipi: em seu país, ele tinha medo de ser preso; nos Estados Unidos, ele temia levar um tiro. Ou seja, a “terra da liberdade” tão propalada não era bem assim para os negros. O documentário é composto de fotos de Cole e narrado com texto seu, complementado com texto escrito por Peck. Os poucos depoimentos são fundamentais para a conclusão do filme.

O APRENDIZ

Uma pena eu não ter visto O APRENDIZ (2024), de Ali Abbasi, quando foi exibido (rapidamente) nos cinemas no ano passado. Mas poder ver na telinha não perdeu sua força, não. É de fato um filme incrível, um retrato da criação de um monstro. Se o jovem Donald Trump (Sebastian Stan) aprendeu as regras do jogo que ditam seu jeito de viver e de governar e desgovernar até hoje com o advogado inescrupuloso vivido por um assombroso Jeremy Strong, o monstro que esse advogado cria é até difícil de descrever com palavras. A trama do filme se passa principalmente nos anos 1970 e 80, quando Trump ainda era um rapaz fascinado pela vida dos milionários e vivia de cobrar de porta em porta o aluguel dos imóveis do pai. Conhecer Roy Cohn muda sua maneira de pensar e agir e aumenta sua ambição. Com a ajuda das trapaças e do jogo sujo do advogado, ele alcança uma riqueza ainda mais impressionante se pensarmos como era a Nova York nos anos 1970, bastante decadente. Algumas cenas memoráveis: a lição inicial de Cohn, a festa regada a sexo e drogas, a negociação sobre o casamento com Ivana Trump (Maria Bakalova), o encontro com o advogado doente, as duas cenas em paralelo que dizem muito de quem é Trump: um sujeito incapaz de ver a vida além da superficialidade do corpo e da acumulação de dinheiro. Todos os atores envolvidos estão incríveis, mas Strong e Stan estão monstruosos de tão bons.

sábado, outubro 11, 2025

O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM (The Last American Virgin)



Ando tendo interesse em rever certos filmes vistos em meu período pré-cinefilia, quando eu não sabia quem era o diretor do quê, ou ainda não tinha feito minha escolha em me dedicar mais ao cinema. Naquela época, a Globo e o SBT disputavam a audiência do público, e, consultando na internet, vi que O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM (1982) foi exibido pela primeira vez no SBT em novembro de 1988 no Cinema em Casa, poucos meses antes de meu ano oficial como cinéfilo.

Nessa época, esses filmes eram comentados na sala de aula e entre os amigos do bairro no dia seguinte. Havia um efeito muito maior de grande audiência, já que até o videocassete ainda não era tão popular assim em certas camadas da sociedade. Eu mesmo só compraria o meu tocador e gravador de fitas em 1992, com o dinheiro das primeiras férias da CABEC, a primeira empresa que trabalhei com carteira assinada – na época que vi o filme na TV, eu era bolsista do Banco do Nordeste (então BNB) e ainda estudante do ensino médio.

Essas comédias mais picantes começaram a ser veiculadas na televisão e faziam muito sucesso, por razões óbvias. Não é que o acesso à pornografia fosse tão difícil assim – as bancas de revistas ofereciam até que muitas opções, sem falar que certas revistas acabavam caindo em nossas mãos através dos amigos do bairo –, mas não havia essa facilidade que a era da internet trouxe, e, antes, que as locadoras de vídeos traziam. Além do mais, nessa época eu era menor de idade e não podia entrar ainda nos cinemas adultos, por assim dizer. Por isso, quando a televisão trazia opções nesse terreno era uma festa. 

Falo isso, mas O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM está muito longe de ser pornografia. Ainda mais visto em retrospecto. Mas era, sim, um estimulante para quem estava com vontade de ver erotismo nas telas e, principalmente, para quem estava com os hormônios “tinindo”. E havia todo um apelo para os mais espectadores mais jovens, que poderiam se identificar mais com histórias protagonizadas por personagens em idade escolar.

O filme dirigido pelo israelense Boaz Davidson hoje é um pequeno clássico que marcou a minha geração por seu apelo erótico e pelas diversas cenas ainda muito engraçadas, mas também, e eu diria, principalmente, por seu final, devastador. Nesse sentido, O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM seria o oposto de A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN, realizado três anos depois, tanto por ter uma produção mais modesta, quanto pela vontade de parecer mais duro e realista ao mostrar o protagonista apaixonado quebrando a cara, vendo uma chance de finalmente conquistar sua amada e depois ver ser sonhos naufragarem. (Não sei o quanto o filme contribuiu para meu pessimismo quanto à realização de um namoro bem-sucedido, mas acho que não.)

Enquadra-se numa série de “pornochanchadas” americanas produzidas na era pré-AIDS, e que hoje não são mais feitas em Hollywood. O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM é também um documento do início dos anos 1980, com direito a uma trilha sonora que traz U2, The Commodores, Devo, The Police, Blondie e tantos outros nomes famosos da música. Inclusive, a faixa "Oh No", dos Commodores, combina bem com a pedrada levada pelo rapaz.

A primeira terça parte do filme o coloca entre os mais divertidos títulos da década, com destaque para a cena do encontro dos três rapazes com as três meninas na lanchonete; em seguida, dos três com a promessa de sexo com uma fogosa mulher latina; e, por fim, a cena dos três transando com uma prostituta barata, que culminaria com outras cenas divertidas envolvendo o chato contraído na relação sexual sem camisinha. O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM oferece o mel e o fel. E tem mais: para quem é um fã de David Lynch e de TWIN PEAKS, podemos ver Kimmy Robertson já antecipando seu papel de loirinha tonta – na série de Lynch e Frost ela é a secretária do xerife. (Algo me diz que Lynch gostou desse filme.)

Na trama, Lawrence Monoson é Gary, um jovem entregador de pizza e estudante secundarista que se apaixona por Karen (Diane Franklin). É paixão à primeira vista. Mas acontece que quem chega junto primeiro é o amigo conquistador de Gary, o loiro Rick (Steve Antin), o que deixa Gary arrasado. Tanto que ele tenta impedir a noite em que Rick vai (supostamente) tirar a virgindade de Karen, o que acaba acontecendo de uma forma ou de outra. Em paralelo, os dois, mais o amigo gordinho (e sempre o que pagava as contas) David (Joe Rubbo) se encontram para aventuras com as meninas.

Revi o filme recentemente com a Giselle, na noite em que estreamos nosso “cinema em casa” em nosso apartamento, após (re)vermos A ESPIÃ, de Paul Verhoeven. E, no dia seguinte, quando comentei brevemente sobre o filme no Facebook (e depois no Letterboxd), acabei sabendo de amigos (especialmente do Rodrigo Pereira) muitas informações curiosas a respeito, como o fato de que a clássica comédia é na verdade uma refilmagem de SORVETE DE LIMÃO (1978), do mesmo diretor israelense, e escolhido pelo país para representar Israel na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro. Conforme informado, os dois filmes, a produção israelense e sua refilmagem americana, são muito parecidos em sua condução narrativa, apesar de haver as diferenças óbvias de geografia, tempo e cultura.

O filme israelense fez tanto sucesso que gerou sete sequências, sempre com os mesmos atores, e esses filmes eram possíveis de ser encontrados nas locadoras brasileiras, que os vendiam com títulos roubados de sucessos americanos. Um deles até chegou a ser lançado nas locadoras como O ÚLTIMO AMERICANO VIRGEM 2.

+ TRÊS FILMES

O BOM MARIDO

Não sou dos maiores conhecedores da obra de Antônio Calmon, mas, sem saber que era dele por muitos anos, fui fã de ARMAÇÃO ILIMITADA (1985-1988), série da Globo que embalou minha adolescência e me fez ser admirador da Andrea Beltrão até os dias de hoje. Quanto a seu trabalho no cinema, gosto muito de seus dramas criminais EU MATEI LÚCIO FLÁVIO e TERROR E ÊXTASE, ambos de 1979. Um ano antes Calmon fez essa comédia aparentemente despretensiosa, O BOM MARIDO (1978), que nem parece ter um roteiro, de tão debochada que é. Ela está entre as “pornochanchadas” cujas cenas aparecerem no documentário HISTÓRIAS QUE NOSSO CINEMA (NÃO) CONTAVA, de Fernanda Pessoa. O sempre incrível Paulo César Peréio é o sujeito que quer ganhar dinheiro com um empresário alemão fabricante de pinicos, usando sua esposa (Maria Lúcia Dahl) como meio de fechar o negócio: a ideia era deixar com que a própria esposa fizesse sexo com o gringo. Mas as coisas começam a dar errado quando o tal alemão resolve usar um atalho para chegar à casa de Petrópolis do negociante brasileiro e quando os empregados resolvem fazer uma festa sem a presença do patrão. O resultado é uma zona muito da divertida, rendendo muitas risadas. O filme pode ser dividido em duas partes, bastante perceptíveis, sendo que a segunda talvez até tenha gags mais eficientes e inspiradas, quando o casal agora tem por alvo um velho milionário japonês bem-dotado. A cena da sauna é impagável, assim com as cenas de sexo ao som de David Bowie e do Sidney Magal. E mais: tem uma cena de intimidade ao som de “Let Me Roll It”, do Paul McCartney. Deu até vontade de soltar um “chupa, Paul Thomas Anderson”! No mais, o filme funciona como um documentário comportamental da sociedade brasileira da época, e feito num momento em que as comédias não tinham medo de parecerem de mau gosto: havia tanto a necessidade de diálogo com o público de todas as classes sociais, quanto um interesse em debochar do país que até já havia passado do tal “milagre econômico” e vivia em situação economicamente mais difícil. A própria questão do penico é um indicador de crítica ao governo. Algumas cenas até pouco importantes são incríveis no quanto se apresentam representativas da sociedade da época e falam muito a quem esteve vivo naquele período, como quando o casal Peréio/Dahl chega a um bar para fazer um telefonema. Só acho que o filme começa a ficar menos interessante perto do final, mas não quer dizer que não seja uma comédia brasileira essencial.

AMORES À PARTE (Splitsville)

Dakota Johnson está num ano muito bom, com duas comédias que tratam sobre relacionamentos, mas as duas são completamente distintas em tom e estrutura. Este AMORES À PARTE (2025) é mais (deliciosamente) caótico que AMORES MATERIALISTAS, de Celine Song. E que bom ver que a atriz anda valorizando diretores com uma carreira iniciante, quase desconhecida, como é o caso de Michael Angelo Covino, que faz o papel do marido rico da personagem de Dakota. Covino só tem no currículo mais um outro longa, A SUBIDA (2019), e mais uns curtas. No longa anterior ele também faz parceria com Kyle Marvin, muito provavelmente um de seus grandes amigos também na vida real. Lembremos que um dos melhores filmes protagonizados por Dakota é CHA CHA REAL SMOOTH – O PRÓXIMO PASSO, de Cooper Raiff, diretor independente de comédias agridoces. Aqui ela entra mais uma vez no território do cinema indie, com um diretor que filma pensando na tela grande: há muitos planos gerais e planos que privilegiam espaços maiores que os corpos de seus personagens. Mas é dentro de um carro que o filme começa: quando o personagem de Marvin leva um fora de sua namorada, vivida pela revelação do momento Adria Arjona (a femme fatale de ASSASSINO POR ACASO). Marvin é o grande protagonista deste filme: a história gira em torno dele, seja na dor de cotovelo sofrida por uma jovem mulher que tem o anseio de experimentar mais e mais parceiros, seja pela esposa do melhor amigo (Dakota), uma mulher tão calma quanto sensual, num papel de certa forma recorrente da atriz, mas que continua funcionando bem em suas pequenas variações. AMORES À PARTE tem uma estrutura em capítulos e um gosto pela bagunça que arranca risadas, ao mesmo tempo que faz lembrar um certo espírito dos anos 1970, com a questão do número grande de parceiros e o tema do relacionamento aberto vindo à tona. Mas é também um filme que valoriza os sentimentos, a dor de seus personagens, que sofrem muito, mas nem sempre se comportam como se estivessem lidando com a dor da perda do ser amado. Quanto à nudez, as coisas se inverteram nos últimos tempos: sai a nudez feminina, mais comum em comédias do passado, e entra a nudez masculina. Há cenas que arrancam muitas gargalhadas, como a dos peixes na montanha russa, ou a da briga dos dois homens após uma noite de sexo com a mulher de um deles. Acho os últimos capítulos menos interessantes do que os dois terços iniciais, mas é um filme com muita personalidade e é mesmo um dos mais engraçados do ano, como diz o cartaz.

DOIS É DEMAIS EM ORLANDO

O filme de Rodrigo Van Der Put deve muito à graça de Eduardo Sterblitch, que aqui faz um rapaz que está prestes a entrar de férias e realizar sua viagem dos sonhos, nos parques da Disney, em Orlando. Ele tem uma cabeça de criança num corpo de adulto. Por outro lado, o menino vivido por Pedro Burgarelli demonstra um espírito de adulto desde a primeira cena, recusando-se a entrar na piscina com seus colegas de educação física e tratando a professora como parceira, enquanto assume a função de fotógrafo do campeonato. Os dois personagens de DOIS É DEMAIS EM ORLANDO (2024) têm algo em comum: não têm amigos e preferem estar sós. Por isso quando o destino os coloca juntos no hotel e nos parques, enquanto os pais do menino estão ocupados, surge um conflito, mas sabemos também que surgirá daí uma bela amizade. E o filme desenvolve com muita leveza as situações, desde a confusão com um dentista metido à besta, passando pelos pânicos que cada um deles manifesta dentro dos parques, até a dificuldade de encontrar o pai do garoto e a preocupação com o emprego. Diversão despretensiosa cujo resultado final fica acima das expectativas.

domingo, setembro 28, 2025

UMA BATALHA APÓS A OUTRA (One Battle after Another)



Ando um pouco carente de ver filmes. Nesta semana foram apenas dois vistos no cinema, e ainda no esquema de tentar lutar contra um tipo de sonolência que vem mais de algum problema na garganta, creio eu, do que de cansaço ou de privação de sono. Vou buscar saber o que está acontecendo. Para ver UMA BATALHA APÓS A OUTRA (2025), o novo e aguardado trabalho de Paul Thomas Anderson, me muni de uma série de coisas: uma soneca de cerca de uma hora antes de ir ao cinema, um expresso duplo antes da sessão e um outro grande durante, sendo que antes disso tomei um suco verde que supostamente teria gengibre. Enfim, consegui ficar consciente durante a sessão, ainda que sempre com aquela sensação de que rever o filme num futuro próximo seria muito interessante.

Gosto muito de PTA, mas nem sempre seus filmes me “pegam”. O anterior, LICORICE PIZZA (2021), me traz algumas boas recordações de certas sequências, mas não me encantou por completo. Assim como foi o caso de VÍCIO INERENTE (2014), mas este ainda acredito que pode melhorar numa revisão. Achei-o confuso, mas talvez seja por causa da adaptação do romance de Thomas Pinchon, de seu texto original, que dizem ser um pouco mais complicado para traduções para o cinema.

A boa notícia para quem não curtiu muito VÍCIO INERENTE é que esta segunda adaptação que Paul Thomas Anderson faz de um romance de Pinchon é muito mais animadora e bem-sucedida. Talvez por ser uma adaptação mais livre, inspirada no romance Vineland (1990) do celebrado escritor. Então o cineasta pôde tomar mais liberdades e trazer a história e seus personagens para um país muito mais próximo de um regime fascista, como são os Estados Unidos da era Trump, em que se mascara menos a supremacia branca e em que certos absurdos são normalizados por mais pessoas.

O caos que impera na história também é algo abraçado por PTA e o humor é muito bem-vindo, em especial para destacar o jeito desastrado de ser do personagem de Leonardo DiCaprio, alguém que já foi membro de um grupo de combatentes revolucionários, mas que, passados 16 anos, não sabe como voltar ao ritmo. Falando em caos, eu lembro de quando saí com dor de cabeça da sessão de EMBRIAGADO DE AMOR (2002) e de quando saí atordoado, mas também muito feliz, na época que vi no cinema MAGNÓLIA (1999). Então, o caos é um lugar ou um ambiente em que o cineasta se sente em casa. Por isso, é interessante já ir ao cinema esperando uma experiência divertida, mas nesse sentido. Mas claro: é um caos controlado, já que tudo que filma é muito bem pensado e planejado.

No caso de UMA BATALHA APÓS A OUTRA, por mais que vejamos o filme como uma obra muito mais de esquerda, há também uma crítica àquilo que deu errado no comportamento da geração da contracultura e no modo como suas lutas foram perdendo espaço para um esvaziamento de utopias. Não que seja isso exatamente o que o filme se propõe dizer, mas é algo que pode ser lido, assim como também podemos vê-lo simplesmente como um misto de thriller de ação e comédia feito por um dos cineastas mais sofisticados da atualidade, e, só por isso, só pela forma, já vale a pena ser visto. Já é o suficiente para agradar os fãs do cinema de gênero.

Paradoxalmente, por mais que seja o filme de PTA com mais ação e dinamismo de sua carreira, talvez seja o que mais convida a reflexões políticas e sociais de seu país e do mundo. Lembrei em alguns momentos dos filmes de Quentin Tarantino: do não ter medo de matar ótimos personagens (KILL BILL), de tirar sarro de nazistas (BASTARDOS INGLÓRIOS) ou de usar o gore na estrada (À PROVA DE MORTE). Tanto que em diversos momentos consegui visualizar Tarantino adaptando este romance, mas ao mesmo tempo me sentindo muito grato por ter um cara como PTA comandando um projeto dessa envergadura, com essa vontade de retomar ao Vistavision.

Só que, diferentemente de O BRUTALISTA, PTA usa muito mais close-ups, valorizando mais as expressões faciais e as performances de seus atores: destaque, claro, para DiCaprio e Sean Penn, mas também para Benicio Del Toro e duas atrizes que roubam as cenas, que interpretam mãe e filha, Teyana Taylor e a estreante Chase Infinity, respectivamente. E falando em elenco, soube que por pouco Leonardo DiCaprio não trabalhou com PTA em BOOGIE NIGHTS – PRAZER SEM LIMITES (1997), um de meus favoritos do diretor, e só não o fez pois acabou indo fazer TITANIC, de James Cameron. Mas a admiração mútua dos dois permaneceu ao longo dos anos e finalmente tiveram a chance de trabalhar juntos. E com a vantagem de ter agora um DiCaprio muito mais maduro, com experiências distintas com diretores como Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Steven Spielberg.

O resultado da soma do trabalho dos dois é um dos melhores filmes do ano, desses que dá vontade de ver de novo (as 2h40min de duração, mal se sente). Além do mais, vale destacar também a trilha sonora de Jonny Greenwood, colaborador de PTA desde SANGUE NEGRO (2007).

+ TRÊS FILMES

A ESPIÃ (Zwartboek)

Rever A ESPIÃ (2006) com a Giselle me fez redescobrir aquele que considerei o melhor lançamento nos cinemas de 2008. Nunca tinha revisto e ver no BluRay caprichado da Versátil foi de dar gosto. Além do mais, é sempre bom retornar ao cinema controverso e sensual de Paul Verhoeven. A ESPIÃ é um retorno ao tema de SOLDADO DE LARANJA (1977), só que muito mais vigoroso e com uma produção maior (até hoje é a produção cinematográfica mais cara dos Países Baixos). Revê-lo também ajuda a torná-lo mais claro: uma trama de espionagem costuma ser um pouco confusa, mas aqui o diretor opta pela clareza, por mais que haja surpresas o bastante ao longo da narrativa. Na trama, jovem mulher judia troca de nome depois de sobreviver a um ataque violento a sua família e amigos e tenta sobreviver numa Holanda sob o domínio dos nazistas, nos anos de 1944-45. Sobreviver e também atuar numa célula da resistência do país, chamada pelos nazistas de grupo terrorista. Nessa sua atuação, o principal destaque é seu envolvimento com um oficial nazista, por quem ela nutre um sentimento forte. Gosto de como Verhoeven foge das obviedades e do preto no branco, além de tocar na ferida do povo neerlandês. Carice van Houten está incrível como a heroína e o filme passa voando: são 2h20min que não são sentidos. Pelo visto foi uma ótima escolha para que a gente inaugurasse o nosso cinema em casa.

RUAS SELVAGENS (Savage Streets)

Este é, muito provavelmente, o patinho feio do box Cinema Exploitation 3. Seu chamariz é a presença de Linda Blair, famosa por ser a garota possuída de O EXORCISTA, mas que não teve uma carreira muito boa no cinema. Uma produção como a de RUAS SELVAGENS (1984) já foi muito difícil, por mais barata que tenha sido. Foi interrompida com três dias de filmagens para depois ser retomada com um novo produtor. Hoje se diz ser um filme antiviolência em sua mensagem, mas obviamente o apelo à nudez e às cenas de violência são feitas com o objetivo de divertir, o que gera sentimentos ambíguos. Trata-se de um rape & revenge cuja vingança não é feita pela moça violentada, mas por sua irmã (a personagem de Blair). O filme de Danny Steinmann começa a ficar melhor em sua terça parte, quando essa vingança toma forma e ela sai à caça da gangue de delinquentes, tão malvados quanto caricatos. Aliás, talvez seja por causa desse teor de interpretações ruins (só escapa o ator John Vernon, que faz o diretor da escola) que o filme foi ganhando também certo culto ao longo dos tempos. Na época, eram de produções de baixo orçamento que surgiam obras mais ousadas do ponto de vista da nudez e da violência gráfica. São obras como essas que têm a coragem de mostrar brigas de mulheres em banheiro feminino, por exemplo. Além do mais, ao que parece, não havia tantos filmes com mulheres encabeçando o papel de vigilantes naquela época. E esse detalhe foi algo que chamou a atenção de Blair para abraçar o projeto. Ela aparece nos extras do DVD se mostrando muito orgulhosa de ter trabalhado em RUAS SELVAGENS.

A ARTE DO CAOS (Verbrannte Erde)

Este já é o décimo longa de Thomas Arslan e talvez o primeiro que chega ao circuito brasileiro. Trata-se da sequência de NAS SOMBRAS (2010), o filme que apresentou o personagem Trojan, vivido pelo ator alemão de ascendência croata Mišel Matičević. Trojan é um ladrão que vive nas sombras e de vez em quando sai para executar um roubo bem planejado e que lhe ajude a se manter por uns seis meses ou um ano. A ARTE DO CAOS (2024) lembra muito o polar, o cinema policial francês dos anos 1950-70, como também lembra o cinema de Michael Mann. Ou seja, é um filme que se preocupa muito com a cenografia e como os personagens se dispõem na tela, muitas vezes escondidos nas sombras, como que para enfatizar um tipo de vida amaldiçoada pelas escolhas e pelo próprio dinheiro. Aqui Trojan recebe um convite de integrar um bando que irá roubar um quadro valioso para um milionário misterioso, mas as coisas não saem como o planejado. Gosto muito de como Trojan é um personagem de aspecto físico pouco expressivo, mas que talvez por isso mesmo esteja tão bem no papel, ainda que muitas vezes seja eclipsado pelo maior vilão, um capanga que não hesita em matar, vivido por Alexander Fehling. Gosto do tom bastante sério do filme, e de como a música, ouvida apenas pontualmente, pois os silêncios também são importantes, de como essa música enfatiza tanto o mistério quanto o ar trágico que se constrói ao longo da narrativa - confesso que até lembrei de alguns trabalhos de Angelo Badalamenti para David Lynch em certos momentos. A violência, até por ser econômica, é intensa quando surge, trazendo mais realismo e aspereza para as cenas, mas sem deixar de lado a beleza plástica da fotografia e da direção de arte. Só peço que venham mais filmes de Thomas Arslan. Por favor. Agradecimentos a Luiz Soares Júnior por dar o toque sobre o filme.

quinta-feira, setembro 11, 2025

O SEGREDO DAS JOIAS (The Asphalt Jungle)



Mais de um mês depois da publicação anterior, consigo uma brechinha para escrever para o blog. Mas posso dizer que tenho boas razões para isto: minha mudança com a Giselle para um apartamento só nosso (ainda que tenha que ficar revezando com minhas irmãs na casa de minha mãe em alguns dias). Então, está uma delícia, mas mexeu com toda a rotina, o que é natural. Então, estamos numa fase de adaptação e de retomada de uma nova rotina, além de ser uma fase também de realização pessoal muito boa. Como não quero deixar este espaço abandonado, vou fazer o possível para atualizá-lo sempre que puder.

O filme brindado dentre tantos que eu tenho para falar a respeito, filmes ótimos que não ganharão espaço aqui com um texto maior, já que o trabalho em escola de tempo integral cada vez me é mais cansativo e cada vez mais suga minha energia, é o clássico O SEGREDO DAS JOIAS (1950), de John Huston. Aliás, é quase uma coincidência eu ter visto esse filme no mesmo ano que vi pela primeira vez também o ainda mais melancólico OS DESAJUSTADOS (1961), que também traz Marilyn Monroe no elenco, agora uma estrela consolidada, mas, infelizmente, prestes a deixar este mundo pouco tempo depois das filmagens.

Huston, depois de ter criado o que talvez tenha sido a base do que se passou a chamar film noir com RELÍQUIA MACABRA (1941), aqui ele cria a base para os heist movies, os filmes de roubo previamente planejados, arquitetados. Devido à cadência mais lenta do estilo de Huston, eu até fiquei surpreso com o quanto se inicia até que rapidamente a cena do roubo à joalheria. Que é uma cena muito empolgante e cheia de suspense, em que nos vemos torcendo pelos ladrões, já que são eles os pobres coitados desesperados por uma chance na vida. Talvez seja difícil sentir dó apenas do aristocrata falido que contrata, por assim dizer, os serviços, mas não dos demais. Isso porque o aristocrata é um sujeito que usa de má fé com os colegas e não tem uma moralidade íntegra como os demais.

E que cena mais linda e mais triste, a da despedida de Sterling Hayden em cena, hein. Que plano magnífico! Acontece algo ali que faz com que o filme saia do ambiente urbano e entre no rural, que simboliza uma espécie de paraíso, de fuga da “selva de asfalto” do título original. Essa cena ganha uma conotação espiritual, em especial com os movimentos de câmera e com o distanciamento que essa mesma câmera dá de seu corpo. Huston mais uma vez se mostra um artista que se solidariza com os perdedores, com os marginalizados, com os espíritos que caíram, mas que ainda lutam contra os obstáculos imensos para atingirem seus objetivos, para alcançarem seus sonhos.

Nesse sentido, os personagens que mais amamos são os de Sterling Hayden, que faz o papel de Dix Handley, um brutamontes de bom coração que sonha voltar para o campo, logo depois que conseguir um serviço bom o suficiente para que ele saia desse círculo vicioso de precisar fazer pequenos bicos e ainda dever à máfia; e o de Jean Hagan, que faz Doll, a mulher de coração partido e sem ter onde morar que vai parar no apartamento de Dix. As cenas em que os dois personagens conversam ou estão juntos são particularmente devastadoras, em especial as cenas de fuga, quando ela se revela disposta a ser também procurada pela polícia para ficar com ele.

A trilha sonora é outra belezura, a cargo de Miklós Rózsa, que já havia trabalhado no fundamental PACTO DE SANGUE, de Billy Wilder. Quanto a Marilyn Monroe, seu papel é bem pequeno, mas já antecipa o que ela faria a seguir, com muita sensibilidade, inclusive na parceria futura com Huston  na pedrada que é OS DESAJUSTADOS. Ainda assim, seu papel também é brilhante. A cena que ela é encurralada pela polícia ajuda e muito a perceber o quanto ali estava uma grande estrela.

Vale destacar também a fotografia de Harold Rosson, que foge um bocado ao estilo comumente adotado nos noirs da época, com muita utilização de sombras e muita estilização. Rosson e Huston optam por um estilo mais cru, mais realista, o que ajuda a conferir um pouco mais de intensidade dramática à obra, uma vez que não estamos ficando deslumbrados com algum jogo de sombras. O que não quer dizer que Huston também não impressione na direção, em especial no uso dos close-ups, que conferem mais urgência ao drama desses personagens. Sobre Rosson, é bom lembrar que ele é um diretor de fotografia de filmes tão distintos quanto CANTANDO NA CHUVA e EL DORADO.

Na trama de O SEGREDO DAS JOIAS, Sam Jaffe interpreta um velho especialista em grandes assaltos, que conseguiu a liberdade depois de um tempo atrás das grades. Sua primeira ação é consultar uma pessoa que possa financiar seu próximo trabalho: um roubo a uma joalheria. Para isso, ele precisará de certo capital, mas também de alguém especialista em cofres, um homem forte para o caso de enfrentar a polícia e um motorista, além de um sujeito que forneça o dinheiro necessário. O filme valoriza cada um desses atores da ação. Os atores-personagens da ação e os atores em si – suas interpretações. E Huston faz isso abrindo mão de um elenco estelar. Não há nenhum ator de fato de primeiro escalão nessa sua obra, e foi sua escolha. E não é porque é um filme B: Huston já havia trabalhado com astros classe A, como Humphrey Bogart, Bette Davis, Edward G. Robinson, Jennifer Jones e Lauren Bacall. Ele escolhe seus atores não por seu currículo em grandes produções, mas por eles se encaixarem nos personagens do romance de W.R. Burnett, mesmo autor do livro que seria traduzido no cinema em SEU ÚLTIMO REFÚGIO, de Raoul Walsh. 

Filme visto no box em BluRay Clássicos Noir.

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LADRÕES (Caught Stealing)

É interessante ver Darren Aronofsky fazendo um filme menos pretensioso na temática, já que é um diretor que gosta de abordar, com frequência, diferentes tipos de religiosidade, mas sem deixar de lado sua solidariedade a pessoas vivendo infernos pessoais. Foi assim com RÉQUIEM PARA UM SONHO (2000), com O LUTADOR (2008) e mais recentemente com A BALEIA (2022). Em LADRÕES (2025), ele até busca um tipo de humor que torna as desventuras do personagem de Austin Butler um pouco mais leves. Butler é um homem que trabalha como barman, e que vive a frustração de não poder ser um jogador de beisebol profissional por causa de um traumático acidente na juventude. Certo dia, ao tomar conta do gato do apartamento vizinho, apanha feio de um grupo de criminosos, e isso vai mudar sua vida, uma vida que até então tinha como prioridade as campanhas de seu time de beisebol do coração. Aronofsky constrói aqui um personagem cativante e outros personagens secundários igualmente bons, como é o caso do interesse amoroso do herói, a jovem vivida por Zöe Kravitz. Mas o que salta aos olhos deste filme é sua dinâmica narrativa, sua montagem e o quanto um roteiro de certa forma simples, mesmo com os plot twists, ganha força com a condução. Gosto muito da última cena do herói, bem representativa da mudança que se opera em sua vida e de seu crescimento pessoal depois de tanto sofrimento, tantas perdas. No mais, adorei a trilha sonora anos 90.

OS ENFORCADOS

Um tempo atrás estreou um filme que muita gente resolveu jogar pedras, A FLORESTA QUE SE MOVE, de Vinícius Coimbra, baseado na tragédia Macbeth, de Shakespeare. Eu achei bem interessante e talvez até mais do que este trabalho de um outro diretor com Coimbra no sobrenome, o homem por trás do ótimo O LOBO ATRÁS DA PORTA (2013). Em OS ENFORCADOS (2024) ele repete a parceria bem-sucedida com Leandra Leal e muda um bocado o registro: sai o realismo mais cru e violento e entra um outro tipo de violência, igualmente grotesca, mas com um toque de humor mórbido, como que para suavizar um pouco para o espectador. Além do mais, Coimbra usa diversas referências, do corpo preso numa parede de um conto de Poe a um banho de sangue de filmes como os de Brian De Palma e horror europeu. Talvez o que eu mais tenha gostado foram as cenas interiores de Leandra Leal andando pela casa reformada e com ares de assombração, com imagens que remetem aos filmes noir americanos clássicos. Já Irandhir Santos, é o homem que herda a fortuna do tio por meios nada recomendáveis. Assim como a própria peça shakespeariana e tantos outros filmes que tratam de matar para obter dinheiro ou poder, OS ENFORCADOS é um conto moral, que às vezes funciona muito bem, mas que carece de mais personalidade. Irandhir Santos está gigante na cena em que demonstra sua psicopatia na quadra da escola de samba, logo após a confirmação da morte do tio (por ele, a partir da ideia de sua Lady Macbeth, Regina). 

MILÃO CALIBRE 9 (Milano Calibro 9)

Nos extras do box Eurocrime, da Versátil, ao ver Fernando Di Leo falando sobre a influência do filme noir para os poliziotteschi, e mais precisamente para seus filmes, só então, quando repensei a estrutura de MILÃO CALIBRE 9 (1972), vi que realmente tem tudo a ver. E não só pela femme fatale (aqui vivida por Barbara Bouchet), mas pela figura do herói solitário, que no caso é também um criminoso (o parrudo Gastone Moschin). Ele é Ugo, um homem recém-saído da prisão, depois de uma estadia de três anos, após um assalto a banco. Todos acreditam que ele esconde 300 mil dólares, tanto a polícia quanto a máfia para quem ele trabalhava, mas ele nega de forma bem convincente. O que se destaca de diferente neste filme, se compararmos com os policiais americanos, mesmo os da década de 70, é o grau de violência, que não se apresenta apenas nas ações de seus personagens, como num PERSEGUIÇÃO IMPLACÁVEL, por exemplo, mas na própria poética, na própria maneira de usar a câmera, nos cortes, na sonoplastia, nos closes. O murro que é desferido contra a câmera, é como se o próprio espectador sentisse a agressão. Ainda assim, quando penso no nome de Fernando Di Leo, o que ainda vou recordar com mais intensidade, carinho e terror é de VINTE ANOS (1978), seu trabalho marcante com Gloria Guida e Lilli Carati.

sábado, agosto 02, 2025

QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS (The Fantastic Four – First Steps)



Quando vejo minha regularidade na escrita nos anos de 2014 e 2015, quando escrevia sobre praticamente todo filme que via, fico um pouco triste com o fato de não conseguir estar fazendo mais isso agora. Mas a verdade é que tudo começou a ficar mais difícil lá em 2017, quando assumi dois turnos na escola. E que piorou ainda mais a partir de 2023, quando passei a ser professor de escola de tempo integral, muito mais desgastante. E os atuais momentos andam sendo ainda mais difíceis, com desafios de ordem familiar e tudo mais. Enfim, a gente faz o que pode e ao menos pequenos textos para cada filme visto, eu tenho feito – embora, para mim, não seja o suficiente, pois são textos muito rápidos e sem um tempo mínimo para reflexão e pesquisa.

Falemos de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS (2025), um dos melhores filmes dos estúdios Marvel, o melhor desde GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 (2023), que já era uma exceção no meio de tantos filmes ruins ou meia-boca que o estúdio andava despejando, sob o risco de perder seu público – e era o que estava acontecendo, especialmente quando a Marvel também começou a produzir séries para o Disney Plus. E foi na época das séries que tivemos o prazer de ver a melhor delas, WANDAVISION (2021), dirigida por Matt Shakman.

Shakman é basicamente um homem da televisão. Pode-se dizer que é um veterano, tendo dirigido episódios de diversas séries desde o início dos anos 2000, como ONCE AND AGAIN, JUSTIÇA SEM LIMITES, A SETE PALMOS, TODO MUNDO ODEIA O CHRIS, CHUCK, HOUSE, MAD MEN, FARGO, GAME OF THRONES, THE BOYS etc. Mas ele foi sempre uma espécie de operário.

Mesmo em WANDAVISION ele não participou do time de roteiristas, mas a Marvel confiou a ele a direção de todos os nove episódios. Tudo bem que a gente sabe que a Marvel tem essa característica de, com frequência, investir em diretores não-autores, mas o sucesso dessa série acabou dando uma moral para Shakman, já que o projeto de séries de televisão do estúdio acabou sendo um fracasso no fim das contas, mas todo mundo lembra com carinho da série da Feiticeira Escarlate e do Visão, ambos vivendo com seus filhos numa espécie de sitcom típica dos anos 1950.

Por mais que QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS não seja perfeito em suas ambições tem tanto uma ambientação de dar gosto quanto uma boa construção dos personagens. Finalmente um filme do Quarteto em que a ideia de família se apresenta de forma tão enfática – como deve ser. E, assim como SUPERMAN, de James Gunn, a intenção de Shakman e do time de roteiristas é aproximar seus heróis de suas décadas de surgimento. Ou do espírito delas. 

No caso do novo filme do Quarteto, a ambientação e o visual retrofuturista é do início dos anos 1960, e isso é algo que agrada bastante, assim como a fotografia bastante colorida e a escolha do elenco para interpretar a família mais importante e querida do universo Marvel. Destaco principalmente Vanessa Kirby, que é o coração do filme, como Sue Storm, que logo no início da trama, se descobre grávida ao fazer um teste de gravidez no banheiro da suíte. Aliás, é difícil não fazer uma conexão da cena do parto neste filme com a cena de PIECES OF A WOMAN. Pedro Pascal está muito bem também como Reed Richards. É um ator de fato carismático, e por mais que sua escalação para viver o Senhor Fantástico tenha sido estranha a princípio, ele tirou de letra.

A montagem é outro destaque: o filme é enxuto, passa rápido e nos convida a ficar sempre interessados em cada momento. Agora, claro que a ameaça de Galactus poderia ter sido mais dramática, ter causado mais impacto, mas ficou suficientemente boa, ainda que não tão boa quanto a história original do Surfista Prateado encontrando o Quarteto nos quadrinhos de Stan Lee e Jack Kirby.

Aliás, não ficou ruim trocarem o gênero do Surfista aqui, vivida por Julia Garner. Achei interessante darem um maior destaque ao personagem do Tocha Human (Joseph Quinn). Johnny Storm até mesmo consegue o que Reed Richards não consegue, ao aprender a língua do planeta da Surfista Prateada. A mudança de gênero, acredito que foi necessária para não trazer uma lembrança mais forte com o filme de 2007.

Este novo é superior em todos os aspectos e toda a sequência dentro da nave é bem empolgante, resgatando a ligação do grupo com a ficção científica, mas sem largar mão de toda as questões familiares. Já quero uma sequência.

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EXTERMÍNIO – A EVOLUÇÃO (28 Years Later)

Tenho pouca lembrança dos dois primeiros filmes da franquia Extermínio (2002, 2007), mas isso se deve ao tempo que os vi na telona. Porém, tenho impressão de que gostei mais deste terceiro filme, com o retorno de Danny Boyle na duração e Alex Garland no roteiro, do que dos anteriores, talvez por subverter as expectativas, por trazer algo de novo dentro do subgênero “filme de zumbi”. Antes de mais nada, o menino vivido por Rocco Hayes tem muito carisma e é o coração do filme. Na primeira parte de EXTERMÍNIO – A EVOLUÇÃO (2025), ele e o pai vão para uma espécie de ritual de amadurecimento, em que ele terá que conhecer o mundo habitado por zumbis, o mundo em quarentena, que corresponde basicamente a toda a Grã-Bretanha. Não apenas conhecer, mas atirar em zumbis com arco e flecha. Nisso, Boyle é Garland mostram os zumbis alfa, muito mais mortais e com o detalhe de andarem nus. E há outra novidade que não vou contar para não estragar as surpresas. Sobre os demais segmentos do filme, achei incrível o momento de descoberta dele com a mãe (Jodie Comer), o encontro com o médico, o momento mori, que dá todo um tom mais melancólico e o filme ainda tem espaço para o humor. Também se destaca o estilo de composição visual gerado pelas câmeras digitais e pela montagem nervosa. Filmão.

TERREMOTO EM LISBOA (O Melhor dos Mundos)

Achei um barato saber que em Portugal se fala "terramoto" e não "terremoto". O mais curioso deste thriller português que busca se assemelhar aos americanos na estrutura, com direito a trilha sonora de tensão quase convencional, é que há tanto o tempero lusitano quanto a falta de recursos para fazer um disaster movie ou uma sci-fi apocalíptica. No mais, gosto do quanto há um destaque às relações humanas, como no casal que trabalha junto e na preocupação com os pais da protagonista, que devem sair de Lisboa o quanto antes. Em certo momento, eu me lembrei de GODZILLA, o original japonês dos anos 1950. Mas só por um momento, e só por causa desse quesito. Em TERREMOTO EM LISBOA (2024), o menos é mais no trabalho de Rita Nunes, e é com isso que se obtém um belo trabalho, com direito a uma ótima performance da protagonista, Sara Barros Leitão. Gosto muito das cenas finais, com toda a expectativa.

ANIMALE

Do ponto de vista do que se espera do gênero horror, temos aqui uma variação do filme de lobisomem, com a mudança de animal. Gosto mais dos aspectos plásticos do filme do que de sua ideia e desenvolvimento. Há no início de ANIMALE (2024) o desconforto de vermos a estupidez de uma tourada (que eu não sabia que existia na França) e os maus tratos aos animais, mas depois vemos que isso faz parte da trama e será um elemento importante para a transformação física e psicológica da protagonista, que inclusive é apresentada logo no começo marcando um touro a ferro. De certa forma, o modo como a diretora Emma Benestan apresenta aquele universo é até de certa forma menos violento do que se esperaria, talvez por que hoje as plateias são mais sensíveis a esse tema. A protagonista, vivida por Oulaya Amamra (vista no excelente O SAL DAS LÁGRIMAS, de Philippe Garrel), se doa ao papel da mulher que vive num mundo extremamente masculino e também muito animal. No meio dos homens, ela diz não se interessar por namoros e querer seguir a vida de toureira. Há outro tema que o filme perpassa, mas que acaba ficando ambíguo dentro da narrativa principal, que é o tema do estupro. É bem-vindo como mais um exemplar de filme de horror que trata da violência masculina, mas poderia ter sido mais eficiente.

domingo, julho 27, 2025

BLACK MIRROR – SÉTIMA TEMPORADA (Black Mirror – Series 7)



Acho curioso como uma temporada tão bacana quanto esta sétima (2025) não esteja recebendo tantos elogios. Tudo bem que nem todos os episódios são tão incríveis assim, mas todos são no mínimo muito bons e interessantes, alguns bastante tocantes; outros, empolgantes. Esta nova temporada de BLACK MIRROR volta com mais força ao campo da ficção científica, algo que a anterior (2023) havia se desviado um pouco, ficando mais próxima do horror, coisa que também me agradou, aliás. Falo abaixo um pouco sobre cada episódio desta temporada, vistos num intervalo de tempo maior do que eu gostaria. 

Common People

Adorei a arte do cartaz deste "Common People", um dos episódios mais pedradas de BLACK MIRROR. O marido (Chris O'Dowd) tentando beijar a esposa (Rashida Jones) que se apresenta como se estivesse com o corpo se desfazendo como um metal líquido. Na história, os dois são pessoas que vivem em empregos simples e mal remunerados. O dinheiro mal dá para eles atravessaram para a outra cidade no dia do aniversário da relação dos dois para comerem um hambúrguer num lugar chamado San Junipero (referência a um dos episódios mais cultuados da série). Certo dia, ela passa mal e se descobre com um câncer no cérebro. Sua alternativa de vida aparece numa nova experiência de uma empresa, que diz que a cirurgia é grátis, mas que o casal terá que pagar mensalidades. "Common People" tem muitas camadas e pode se referir a diversas coisas: é fácil pensar diretamente nos planos de saúde, mas também nos serviços de streaming e, indo mais fundo, na própria vida que levamos hoje, muito dependente da tecnologia. Aqui a tecnologia aparece como um vampiro de almas, por assim dizer. O final só não é mais devastador porque, em determinado momento, a vontade de viver daquele jeito se torna mínima.

Bête Noire

Acho que o mais curioso deste episódio é que eu, pelo menos não cheguei a acreditar na protagonista, embora também não confiasse na loira que aparece no escritório para desestabilizar seu mundo. Na trama, Maria (Siena Kelly) é uma garota especialista em doces (na verdade, sua empresa é mais sofisticada do que apenas uma doceria). Ela fica bastante incomodada quando uma ex-colega dos tempos de escola chega para trabalhar em seu mesmo espaço profissional. Estranhas coisas começam a acontecer e Maria passa a achar que é essa mulher, Verity (Rose McEwen), que, de alguma maneira, está fazendo algo para lhe prejudicar. Ao longo do episódio sabemos alguns motivos. A melhor parte é o embate final entre as duas. Pode não ser dos melhores episódios da série, mas é bem interessante como uma variação de À MEIA LUZ, O BEBÊ DE ROSEMARY e outros filmes sobre gaslighting.

Hotel Reverie

Segundo mais longo episódio desta sétima temporada, "Hotel Reverie" parece uma mistura de A ROSA PÚRPURA DO CAIRO com o belo "San Junipero" (olha ele de novo!). Mas aqui não é a personagem do filme que sai da tela, mas uma atriz que invade a realidade de um filme clássico, a partir de uma nova tecnologia que permite que um ator consiga contracenar com personagens de inteligência artificial gerados a partir de conceitos dos filmes-alvo. A ideia então é abraçada pela atriz vivida por Issa Rae, cansada de fazer papéis secundários em grandes produções e de trabalhar como protagonista apenas em filmes indie. No filme dentro do filme, ela conhece a personagem que não sabe que é uma personagem (Emma Corrin), até que em algum momento essa falta de consciência é quebrada. Em algum momento este pequeno filme, que não é tão pequeno assim, começa a cansar, mas gosto do epílogo, embora não goste tanto assim da conclusão da situação das duas mulheres dentro da nova versão do filme dentro do filme. De todo modo, é sempre bom ver uma boa ideia sendo desenvolvida. E ideias não têm faltado a Charlie Brooker.

Plaything

Um dos mais interessantes desta nova temporada, este "Plaything" já começa intrigante, com o personagem de Peter Capaldi se deixando prender numa loja simples e numa civilização avançada o suficiente para capturar pessoas que têm ficha criminal com um exame de DNA imediato. Mas isso é o de menos: o mais importante surge no depoimento do personagem na delegacia, que nos levará para sua juventude, quando teve contato com uma criação de inteligência artificial com visual de videogames antigos. Muito legal o tom retrô, afinal, boa parte da trama se passa mais ou menos nos anos 1990. Dos episódios da série, é o que mais se aproxima de um cyberpunk. O diretor David Slade já havia comandado um episódio especial da série-antologia: "Bandersnatch" (2018), que ouvi dizer que estaria saindo da Netflix, sem que os demais saiam. O que me pareceu um bocado estranho.

Eulogy

Este é um dos mais melancólicos episódios de BLACK MIRROR, e que bom que a série pôde contar com um ator tão bom quanto Paul Giamatti. Aqui ele é um homem solitário que recebe a visita de uma moça que fala sobre o falecimento de uma ex-namorada dele. A lembrança dessa mulher logo traz um impacto grande no protagonista. Como aqui se trata de BLACK MIRROR, a tecnologia está aí para perturbar, mas também para nos deixar muito empolgados com a criatividade da história. A ideia da filha da mulher falecida é criar, a partir de memórias de quem a conheceu, a partir de um equipamento chamado "eulogy", capaz de fazer com que a pessoa busque numa foto borrada que seja a memória daquele momento. É também uma história de dor imensa e de reconexão com um passado que a pessoa até então queria esquecer. É como se fosse a um pequeno filme sobre um reencontro amargo com um amor perdido.

USS Callister – Into Infinity

Acho engraçado que eu tenha tão pouca lembrança de "USS Callister", episódio da quarta temporada (2017) de BLACK MIRROR. Resolvi encarar esta continuação desse episódio sem rever o anterior e achei absolutamente fascinante. Não sei se melhor, mas talvez seja. Talvez porque a personagem de Cristin Milioti (PALM SPRINGS) seja tão boa e de tão fácil simpatia por parte do espectador que seu carisma é quase o bastante. Temos ela como duas personagens: a original, que trabalha na empresa Infinity, e a sua clone, que está presa numa nave espacial junto com outros clones. "USS Callister - Into Infinity" ainda traz um interessante flashback do dia que os personagens de Jesse Plemons (o inventor) e Jimmi Simpson (o dono da companhia) se conhecem. É interessante notar que esta temporada explora muito bem universos alternativos. Acontece com "Plaything", com "Hotel Revery", um pouco com "Eulogy" e finalmente com "USS Callister - Into Infinity". E isso não chega a ser uma novidade na série de Charlie Brooker. Há, inclusive, uma referência mais uma vez a "San Junipero" (2014), um dos mais celebrados da série, aqui aparecendo como nome de um hospital. De certa forma, parece ser uma obsessão de Brooker apresentar personagens presos em circunstâncias cruéis: talvez o pior/melhor exemplo seja o de "White Christmas" (2014).